Humor, nonsense, sátira, junte a isso algumas incursões no universo onírico, com um tiquinho de nostalgia e introspecção.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Quem garante? Tudo pode mudar, de uma hora pra outra. Mais cedo ou mais tarde, vai cada um pra um canto.


31 DE DEZEMBRO DE 1999
(EPISÓDIO QUASE AUTOBIOGRÁFICO)
 


Um dia de outono de 1981, último ano do colégio. Estava sentado na minha carteira, fingindo que não prestava atenção no pacto que ali, ao meu lado, se selava. Lá na frente, o professor de matemática falava para as paredes.

- Fica combinado, então. Nós cinco.
- Aconteça o que acontecer, tem que estar todo mundo lá.
- Tá tão longe isso, gente. Esse dia não vai chegar nunca, vocês não se tocam, não? Tanta coisa mais importante pra pensar... o vestibular, a faculdade. E depois tem outra, a gente vai continuar junto.
- Quem garante? Tudo pode mudar, de uma hora pra outra. Mais cedo ou mais tarde, vai cada um pra um canto.
- Tudo bem, só que até lá estaremos no século 21. De onde a gente estiver, vai bastar apertar um botãozinho e fazer o teletransporte para a pracinha. Tranquilo, pessoal.
- E se eu já tiver casado, com um monte de filhos...
- Não, não. Tem que vir sozinho.
- É, nada de família junto. Só a gente mesmo, esposa não é da turma.
- Que jeito, meu? Que mulher vai aceitar que você passe a virada do milênio com quatro barbados ao invés de ficar com a família? E quatro barbados carecas, porque até lá...
- Bom, por mim, tá feito.
- Eu também topo. Pode redigir uma ata e botar meu nome que eu assino.

Eles cinco, a panelinha inseparável, estavam tramando de se encontrarem à meia noite do dia 31 de dezembro de 1999, na praça do coreto. Passagem de ano, de década, de século e de milênio (não exatamente de século e de milênio, mas a data era emblemática). Dezenove anos depois. Eu não conseguia imaginar aquele reencontro. Era amigo dos cinco, mas não era exatamente da turma. Tanto que eles não me incluíram no pacto.


(Coloque aí na sua telinha um efeito especial de passagem de tempo. Velhas casas de família viram prédios. Os Corcéis, Opalas e Brasílias agora são Vectras, Fiestas e Golfs. A imagem em sépia fica colorida. E aparece aquele texto bem manjado no rodapé do vídeo: “19 anos depois”...)

Por nada nesse mundo eu poderia perder aquela cena. Queria assistir de longe, ver sem ser visto, estava de bicão naquela festa privê. Depois do encontro me juntaria a eles. A hora da virada chegou e me pegou sozinho ali na praça. Meia noite, nada. Meia noite e meia, nada. Ninguém apareceu. Só eu, a testemunha intrometida, o que não era pra estar lá. Decidi ficar mais uns cinco minutos, até dar uma da manhã e ter certeza de que não apareceria mesmo ninguém. Era horário de verão. Será que estava valendo o horário antigo? Se fosse assim a coisa tinha acontecido às onze da noite e talvez já tivessem ido embora. Foi quando surgiu um rapazinho, de jeans e camiseta branca, meio ofegante. Sentou-se num dos bancos, olhou para os lados, consultou o relógio, esperou. Os cabelos longos e lisos, os olhos amendoados, as pernas finas. Claro, era o Tavito. Em qualquer lugar do mundo o reconheceria.

Saí do meu posto de observação e fui até ele.
- Tavito!
-
Não era possível, o tempo não tinha passado pra ele. A mesma cara, nenhuma ruga, nenhum cabelo branco. O Tavito me olhava com um jeito de quem não estava entendendo nada.
- Sou o filho dele. Meu pai morreu quando eu era criança. Deixou uma carta lacrada, que só deveria ser aberta ontem, dizendo que tinha um encontro marcado com seus melhores amigos hoje à meia noite, aqui nesta praça. Se por algum motivo ele não pudesse vir, eu deveria representá-lo. O senhor deve ser um deles...

Logo ele, o Tavito. Dos cinco, o mais descrente do pacto. O único a honrá-lo, mesmo morto.

- E os outros três, já foram?

Sentei ao seu lado e expliquei a história e minha condição de testemunha. Depois ficamos ali, madrugada adentro, à espera dos quatro ausentes. Uns fogos estouravam ao longe, carros passavam pela pracinha buzinando, grupos de branco iam em direção ao clube. Falei da linha do trem, que antes dele nascer cortava a cidade de fora a fora. Comentei como o pai dele era bom de natação, os campeonatos que ganhou, o sucesso que fazia com a mulherada. Os porres que tomamos, os aventais brancos que vestíamos na escola. Ele me contou do acidente de avião, do trauma da perda, do segundo casamento da mãe. Eu escutava, mas não ouvia. Divagava, vendo em sua boca os lábios do pai dele me sussurrando as respostas da prova de biologia.



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.

segunda-feira, 4 de junho de 2012


A PRIMEIRA MAQUETE





- Eu quero que você me faça só a maquete, por enquanto.

- Tá certo, mas o senhor tem ideia do trabalho que isso vai dar? E se o projeto não for aprovado, já imaginou o tempo que eu vou perder? Meu negócio é carpintaria e marcenaria, essa história de maquete é servicinho de chinês, não é a minha praia.

- Mas não vai ter jeito, moço.  Quem encomendou o trabalho quer ter uma prévia pra ver se está tudo de acordo. Esse serviço é de muita responsabilidade. Eu diria até que o destino da humanidade depende dele.

- Sei não, acho que o senhor não regula bem da cabeça.

- Digamos que a minha sanidade mental não vem ao caso no momento...

- Mas espera um pouco, o que o senhor quer é uma arca ou um navio? Esse desenho que o senhor me trouxe parece mais um navio. Arca é como se fosse um baú, é pra organizar as tralhas dentro de casa. Ó só, tá aqui no pai dos burros: “Arca: caixa grande, geralmente de madeira, com tampa plana, usada para guardar roupas, objetos etc.”. Por falar em burro, tenho que fazer uma acomodação pra ele e sua burralda, não é mesmo?

- Sim, e pra todos os outros pares de bichos.

- E pra família inteira do senhor...

- É.

- O senhor me falou que tem que ter um casal de tudo quanto é bicho, insetos inclusive, certo? Pois o senhor vai ter problema com o casal de cupins. Primeiro pra saber qual é o macho e qual é a fêmea; segundo porque eles vão procriar dentro da arca e comer todo o madeiramento. Estou alertando agora porque de madeira eu entendo um bocado...

- Ok, meu amigo, mas eu preciso saber do prazo pra fazer a maquete...

- Por favor, me diga pelo menos o que o senhor quer fazer com isso.

- Não posso. Meu cliente me pediu sigilo absoluto sobre esse projeto.

- Mas que espécie de projeto é esse?

- Na verdade não é uma espécie de projeto, mas um projeto de todas as espécies.

- Hã??? Olha, quanto mais o senhor explica, mais eu não entendo nada.

- Deixa pra lá, eu preciso saber se você faz a maquete. Simples assim, meu amigo. Entendeu???

- Pelo tamanho do espaço reservado para o compartimento de comida, o senhor vai viajar com a bicharada uns quarenta dias, mais ou menos. Eu só queria saber como é que vai levar a embarcação até o rio ou o mar mais próximo... Nossa, tá muito mal contada essa história. Fora a confusão toda na cadeia alimentar. Se botar todo mundo junto, sem gaiola de separação, o senhor vai interferir no ciclo predatório. E bicho voador? Pomba, urubu, abelha, borboleta, vai ficar tudo voando misturado? Acho que o senhor faltou nessa aula de biologia, heim.

- Ai, ai, ai, dai-me paciência...

- Bom, pra começar o serviço eu vou precisar de um sinal...

(Trovão, raio)

- Tá bom esse sinal pra você?

- Que sinal? O senhor não me deu dinheiro nenhum por enquanto. E eu vou querer um bom adiantamento...

- Pelo amor  de Deus, anda logo com isso. Tá começando a chuviscar... olha, esquece a maquete e parte logo pra arca, depois eu me acerto com o meu cliente. Você é enrolado demais, parece que não quer pegar o serviço.

- Não é isso, não. Pegar o serviço eu pego, mas se começar a chover o prazo de entrega muda. Sabe como é, tem que parar tudo, recolher as ferramentas, esperar a chuva passar...


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.

domingo, 29 de abril de 2012


ESTAÇÃO PARADISO


Abre com lua e estrela, a pleno brilho em lugar qualquer. Clima de épico bíblico. Cena 2: panorâmica nos trilhos da linha azul do metrô. O filme dentro do filme dentro do filme. Metrô é espaço de passagem e não de saudosismo, destrói sem dó pessoas, memórias e o que restar de humano na meia dúzia de desolados a esperar na plataforma. Ninguém "é" estando ali, fica-se provisoriamente. Centenas de cópias piratas de DVD do monumento de Tornattore, prontas para serem esmagadas pelo próximo trem. Do jeito que fazem quando a Polícia Federal apreende contêineres de ray-bans falsificados. Travelling lento. Slow. Fusão para mim, dizendo em off algum lamento indecifrável. Uma cópia de cinquenta centavos do Cinema Paradiso não deixa de ser uma irônica continuidade dele. A banalização da permanência, diria o crítico com ar blasé ajeitando os óculos. A saga das películas salvas e guardadas, as âncoras enferrujadas na conversa dos dois na praia, o ancião cego ordenando que o menino vá embora da aldeia e não olhe para trás. A ferrugem da âncora, metáfora. Totó morreu do coração após aquele choro todo vendo as cenas de beijos censuradas pelo padre - imprevisto que não constava no roteiro. Ennio Morricone é outro que pode morrer em paz depois da trilha que fez, ela também nos trilhos agora, esperando a morte vestida de bites. Ninguém quase soube quando há meses um estilhaço de meteorito colidiu com o estacionamento onde fora o Nuovo Cinema Paradiso, que por sua vez era a reconstrução do antigo que pegou fogo. Pegaram fogo o velho cinema e o velho Alfredo, queimados o celulóide e o projecionista. Um dedo de poeira acumulada sobre a ruína da ruína da ruína. Daqui do buraco da estação eu sei que chove lá fora, no pavimento dos autos. É triste, não gosto. Quero de volta o meu ingresso, trazido pelo Totó menino com vestes de coroinha que vem chegando de bicicleta.



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domingo, 15 de abril de 2012


ENTERTAINER


Marcelo Sguassábia


Filha única do casal Floriano e Aléxia Montezuma, Fatinha nasceu com uma memória prodigiosa, digna de tese pós-doc em neurologia. Dentre outras façanhas, a garotinha de cabelos cacheados aos 3 anos já sabia de cor o Princípio de Arquimedes, e a pedidos da família o enunciava às visitas. A certa altura das muitas reuniões semanais em sua casa, a partir de um sinalzinho combinado com o Tio Ernesto, lá ia a belezinha pro meio da sala, entrelaçando uma mão na outra e olhando para o teto, como quem puxa pela memória: "Todo corpo submerso em um fluido experimenta um empuxo vertical e para cima igual ao peso do fluido deslocado". Um belo dia arrematou, num improviso que divertiu muito os convivas: "E a mamãe falou assim que o Seu Arquimedes saiu da banheira correndo pra rua, gritando Eureka, Eureka! e assustando a vizinhança com o bilau de fora. Não sei se é verdade, ela que falou. O bilau de fora também... não sei porque eu nasci sem bilau, mas em compensação”...

A mãe foi rápida e tapou providencialmente a boca da criança, antes que continuasse e dissesse o que não devia.

Quando o sarau familiar se estendia além do previsto, Fatinha era de novo convocada para animar o ponche com pães de queijo, dizendo os nomes das cores do pantone Suvinil. Os convidados se revezavam, escolhendo a esmo um código numérico no leque de 1.563 matizes. Sem titubeio, a menina dizia o nome da tinta. Era um festival de terracotas, verdes maritaca, brancos cordilheira, azuis netuno. Para cada acerto, palmas e mais palmas. Até que alguém falou o código E098, correspondente a vermelho carmim. E a menina: “foi dessa cor que o papai ficou quando pegou a mamãe no sofá da sala com o Tio Ernesto, os dois do mesmo jeito que estava o Seu Arquimedes quando saiu da banheira”.

Constrangimentos assim costumavam, compreensivelmente, esfriar a reunião. Mas nem sempre eram motivo para estragar completamente a festa. Assim, se após a Polonaise de Chopin, tocada pela madrinha da menina, o pessoal continuasse sem arredar pé, o jeito era chamar a Fatinha para outro número imperdível.

Depois de se fazer um pouco de rogada, lá ia nossa entertainer mirim a desfiar, um após outro e quase perdendo o fôlego, os nomes de todos os presidentes e vice-presidentes equatorianos e de suas respectivas esposas, por ordem cronológica de posse.

Se ainda assim os convivas pedissem mais festa, e não tendo mais o que servir para comer ou beber, apelavam de novo para a superdotada Fatinha, desta vez lançando mão de um expediente muitíssimo mais eficaz que a vassoura atrás da porta. Era quando a pequerrucha pegava pesado, ao declamar de cabeça um edital do DETRAN, convocando motoristas para comparecerem à delegacia regional de trânsito, com os nomes em ordem alfabética, modelo do veículo, números da placa e do chassi. Limpava o pigarrinho da garganta e começava: “Marca/Modelo: GM/Chevette/1982. Proprietário: Aarão Fonseca de Sousa, Placa LVG3213/PI, Chassi
9BGLL19BSRB332112. Marca/Modelo Fiat/ Siena/2004; Proprietário:
Abdias Hugo Soares de Brito, Placa LVI5840/PI, Chassi
9BWZZZ30ZKT007813”...

O decoreba agiu como um repelente de moscas. Terminado o serviço Fatinha foi para a cama, não sem antes dar uma lida no catálogo telefônico de Teresina.

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